segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Mito e Geografia

As duas categorias que mais me instigam hodiernamente são o mito e a geografia imaginária. Said, mesmo sem ter utilizado mito em qualquer parte de sua obra, ao refletir sobre a questão das relações entre Oriente e Ocidente, esbarra com a ideia de geografia imaginária. Esta é reflexo de um mundo organizado e classificado que se torna familiar aos indivíduos que ocupam determinado espaço. Os objetos, uma vez classificados, compõe um sentido transcendente para aquele grupamento, isto é, tornam-se geograficamente imaginários. O que é possível complementar a essa ideia é que o espaço geográfico imaginário é mítico.
Os mitos sempre são permeados de espaço. Seu sentido relaciona-se ora direta, ora indiretamente com o espaço. Note-se Zeus, deus dos trovões e das cavernas, ou as ninfas que por capricho sopravam levantando poeira e alterando formas rochosas; mesmo Jeová é chamado de deus da montanha em algum momento e é capaz de influenciar no espaço onipotentemente, só para citarmos alguns exemplos simples. É possível sofisticar-se os exemplos e relacionarmos uma concepção temporal ao mar em seu eterno retorno, ou nos aforismas de Heráclito em que o rio lava e transforma, cria e recria o Ser incansavelmente.
As enchentes e deslizamentos alteraram profundamente a geografia física teresopolitana. É relativamente simples reorganizar o espaço com um pouco de razão e ciência quem sabe. Me parece, todavia, hercúleo o trabalho de compreenção do que será a geografia imaginária teresopolitana. O espaço outrora conhecido e familiar cedeu com as chuvas. Os rios seguem outros rumos agora, criam um novo tipo de Ser. A questão "porque o Ser e não antes o nada?", resgatou-nos da monotonia a um custo trágico. Somos novamente intimados a nomear o Ser e se re-conhecer nessa nova configuração espacial, a criarmos nossos novos mitos.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Um pouco de desentendimento

Os últimas dias são de incognoscibilidade. Há uma série de instituições particulares, filantrópicas, governamentais agindo na área dos acontecimentos ligados às chuvas do dia 12 de janeiro. Essas instituições que aparentemente deveriam sincronizar-se, envolveram-se em uma série de conflitos nos últimos dias. 
O exemplo forte deste conflito é a relação entre a Prefeitura e a Cruz vermelha. A primeira, governamental, argumenta que orienta-se pela vontade popular e realiza uma sorte de interesses cujos objetivos são o bem estar e a segurança da sociedade que a mantém e a legitima, tendo em seu controle recursos financeiros e humanos. A segunda, articula-se e organiza-se internacionalmente, sugere retoricamente que sua preocupação é o bem estar do ser humano e o suporte desinteressado em busca do bem estar de todos os indivíduos, apóia-se no trabalho voluntário e nos órgãos públicos.
O que se esconde por baixo desse conflito institucional? Ideologia!
Há uma disputa ideológica intensa entre estas duas. A primeira - em situações como a nossa - é exposta à impopularidade por conta de sua impotência e incompetência. Incompetência de prevenir ou minimizar os efeitos de um fenômeno natural tão antigo quanto o próprio planeta. Impotência porque é desorganizada desde suas raízes, desesperadamente desarticulada e desorganizada, incapaz de reagir adequadamente. Surge assim um tipo de discurso positivo e naturalizante que, ao mesmo tempo, destaca a positividade da ação governamental e atribui às chuvas e fenômenos naturais a causa do evento.
A segunda, especialmente aqui, no anseio de disfarçar os interesses que a movem e o descontrole de suas ações, julga a si mesma como imparcial e independente de qualquer instituição. Eximi-se assim da responsabilidade de organização interna. Em bom português, dá a si mesma a chance de culpar, do que quer que dê errado em suas ações, terceiros. Se a cruz vermelha é ligada à convenção de Genebra e a ONU, é claro que ela é orientada por interesses dessas instituições, mas quais são eles? Não importa, o discurso de imparcialidade neutraliza a questão.
O que se busca é legitimidade. A cruz vermelha precisa da legitimidade da neutralidade para angariar voluntários. Os governantes para manterem-se governantes. Ouvi de alguns que os dois tem  o mesmo objetivo, ou seja, socorrer os necessitados. Concordo quanto ao interesse comum, mas discordo do que se chama de necessitados. Cruz vermelha e Estado são os necessitados desses momentos e os dois, finalmente, defendem a si mesmos nessa disputa.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Mitos Teresopolitanos

Alguma coisa acontece com quem vive situações como as dos últimos dias. Cria-se uma série de estórias e relatos envolvendo quem conta e os eventos. Estes relatos se propagam intensamente, de tal forma, que se contássemos o número de pessoas que os arautos dizem terem visto falecidas, o resultado seria o triplo do número real de mortes. Todos os voluntários parecem querer ver algo dramático, presenciar algo épico, sentir a catástrofe na pele. Um impulso imediato os move em direção às áreas destruídas atrás da possibilidade de se encontrar com alguém a ser resgatado. É o mito da ajuda. A expressão mais usual é a de que devemos fazer nossa parte, fazer o possível para ajudar.
A extensão, durabilidade e intensidade desses relatos míticos atendem a uma demanda significativa. Uma sociedade constrói a partir desses relatos sua memória. As informações veiculadas pelas mídias, por mais que busquem a dramatização cinematográfica (ou de novela) dos eventos ao entrevistar pessoas em choque, ou insistir em imagens de destruição, não são capazes de formar essa memória trágica que se adquire a partir desses relatos. O máximo que consegue é vender à essa memória surgente uma imagem que lhe dê satisfação objetiva.
O mais interessante desses relatos é a intensidade com que são contados. Não basta uma seleção de ideias e de palavras usuais nesses eventos, tais como, "perderam tudo", "importante é estar vivo" ou a minha preferida "o bairro acabou". Não! Esses relatos são preenchidos por variações sensíveis na voz, revelando uma forte emoção suprimida, o importante é seguir contando. Olhos que se apertam como que contendo lágrimas, mas que também serão reprimidas porque relatar o que se viu é o mais importante.
Toda essa emoção é comprovada pela objetividade do drama vivenciado. Não basta assitir de longe ao resgate de um homem morto. Este homem deve estar abraçado a um menino, automaticamente identificado como seu filho. Seu rosto deve estar voltado ao do filho, um olhar vazio, morto, mas preocupado com aquele momento em que suas vidas findaram. Finalmente, este homem deve ser alguém conhecido, alguém bom, respeitado cuja perda da vida será sentida pela eternidade. Eis o mito da tragédia.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Semiologia do cumprimento

Um cumprimento despretencioso nesses tempos de catástrofe revela um pensamento a espreitar as cordas vocais implorando por um som que o expresse. Do velho - oi tudo bem!? Passamos ao - oi, tudo bem, e na sua casa todos bem!? Uma expressão que se ouve e se repete com imensa naturalidade.
Em tempos idos essas curiosidades sobre seu estado de ânimo e saúde "tudo bem?" eram mais um desses comportamentos repetitivos e regulares que se institucionalizaram. Mas e o acréscimo da preocupação com a casa do interlocutor, ou com a família? Esse é o espírito dos tempos que vivemos.
Alguns antropólogos já mostraram o valor da casa e da geografia imaginária e o quanto o sistema de classificações humanas depende de uma identificação com o espaço em que se vive e o quanto esse espaço imaginário é uma área de conforto e descanso graças à intimidade com este mundo classificado. A pergunta pela casa revela o deslocamento e o desconforto de quem pergunta. Teresópolis não é mais cognoscível, não se permite entender por um sistema de classificações usual há pouco tempo. Ouvir a resposta de que "tudo está bem, no meu bairro não aconteceu nada" ou "perdi tudo, o bairro acabou" mais do que servir à elaboração de uma ciência dos fatos, responde ao anseio imaginário de se reclassificar um espaço outrora cognoscível.
Há alguns dias uma pergunta tem rondado os pensamentos: o que será de Teresópolis depois disso tudo? Ainda não sabemos. É certo que ela servirá aos mesmos propósitos, servindo de área de conforto e descanso, mantendo seus vínculos sociais ativos, com suas instituições todas funcionando como funcionavam (mal), mas o espírito dessas manifestações e sob quais signos seremos capazes e entender a cidade são questões cujas soluções ainda permanecerão na penumbra.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Os mortos que andam?

O cenário apocalíptico tem me fascinado. A pergunta fundamental é o que acontece à humanidade diante do caos apocalíptico? Ou se a reformularmos pode-se apresentá-la assim: do que a humanidade é capaz no caso do apocalípse?
Aquilo que alguns fãs de zumbis por vezes não compreendem é que a alegoria dos mortos transeuntes é a promessa profética para o nosso próprio apocalípse. Uma multidão reduzida a um comportamento instintivo, procurando sem rumo e sem espectativas nenhum objetivo. Algumas séries e filmes de zumbi são taxativos ao afirmar que os zumbis são uma massa sem consciência.
A inconsciência e a ação humana reduzida à execução dos instintos primários torna a humanidade essa massa. Os conscientes sobreviventes desumanizados, ainda possuidores de consciência, que os distanciam da massa, são a marca de uma nova espécie, de um novo tipo de criatura: o sobrevivente.
Os grunhidos e sons incompreensíveis tornam-se uma sinfonia de morte, revelando o sentido originário do caos, ouvidos e compreendidos por uns poucos sobreviventes. Os sobreviventes são aqueles que não se comportam naturalmente, pois são chamados a criar para si uma consciência nova diante da finitude. A morte dos sobreviventes e sua imediata transformação em zumbi, é a incoporação de sua condição de indivíduo à de membro de uma massa uniforme. Não morrer era des-humano, no apocalípse muda-se essa condição. Lutar contra a morte passa a ser des-humano. Dessa forma os sobreviventes realizam-se plenamente enquanto lutam pela vida, mas distanciam-se de sua condição humana de finitude, ao negar a morte como regra.
O apocalípse e a morte anunciados realizam-se aos poucos. O que chamaríamos de agentes da morte, zumbis, ou agentes de massificação peregrinam a esmo pelas ruas. Ouvimos e identificamos seus sons ideológicos, sem,. no entanto, compreendê-los. Diante de nossa situação des-humanizada, me pergunto por quanto tempo sobreviveremos.

O trágico e a tragédia

Há um imensa sondagem sobre o conceito de tragédia e sua manifestação estética. Basta lembrar de Hegel e Nietzsche para se entender a extensão do assunto.
A tragédia enquanto manifestação artística implicava geralmente em um retorno irrecusável de situações para os personagens. Suas vidas seguiam um fluxo eterno de retornos e repetição de ações e consequências. Veja-se Édipo, atraiçoado por uma profecia, foge de seu destino o quanto pode, mas este acaba por encontrá-lo.
A música, por sua vez, além de climatizar o ciclo vital, inaugura ou encerra uma cena, um acontecimento, dramatizando-o e dando à tragédia um aspecto ritualístico.
A lição deste tipo de tragédia seria apresentar e promover a aceitação do inevitável, admitindo-se que os dramas e ações são condenadas por uma força maior que os leva a consequência não previsíveis individualmente, mas de pleno sentido quando visto em totalidade. Esta aceitação da condição de submissão diante da força natural é o espírito da tragédia. Essa naturalização recebe dos ecos sonoros da música um significado psicológico que comunicaria a aceitação e, ao mesmo tempo, torna o ato de aceitar um ritual.
Os heróis trágicos situam-se longe do cognoscível. Pelo contrário, suas vidas são manipuladas por uma força natural que lhes transcende, mas que acaba por se mostrar ao Herói, que finalmente aceita sua situação.
Heis nossa situação: um evento climático somado à uma série de incompetências da esfera governamental, que nos lega um número absurdo de pessoas mortas, um grande de feridos e doentes outro gigante de desabrigados, chamado de Tragédia.
A tragédia compondo os títulos das matérias nos jornais que informam a situação preenchem, de um lado, necessidade ideológica do poder público de naturalizar o evento, dando a este o caráter da inevitabilidade. Ao mesmo tempo, prepara os espíritos dos vitimados para a futura aceitação de sua própria situação fragilizada. Enfim, auxilia da desresponsabilização dos responsáveis, atribuindo a uma força natural ou sobrenatural a causa de eventos como os ocorridos.
Acompanhando as informações acerca da Região Serrana do Rio, nota-se  como a grande mídia televisiva sempre se utiliza de algum tipo de efeito sonoro anunciando o ato heróico ou o depoimento da vítima. Ouçam as criações míticas das bocas dos milhares de transeuntes que nada mais tem a fazer a não ser falar do evento, o  primeiro é o som que completa o quadro desta tragédia, o segundo é o som do ritual que se faz à chuva, à catástrofe.
A conclusão perigosa advém daí: se é trágico, não haverá culpados, somente um destino que precisa e vai, inevitavelmente, se realizar na forma de catástrofe, então, mesmo quando se aponta a incompetência do poder público em prever tais situações, pode-se sempre apelar para a surpresa e a força natural incontrolável, safando quem quer que seja o responsável pelo caos que se instalou.